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Bernardo Vidal Pimentel

Agosto de 2024 - Um banho veranil de ética e ciência

No substack: esFOAMeados No patreon: esFOAMeados Em podcast: Hipótese Nula


TABELA DE CONTEÚDOS

 

SINOPSE


🎂 Nata da nata

- Cuidado de penso --> Pensos com prata equiparáveis ou até superiores a pensos com iodo (BMJ Open)


🍰 Nata

- SCA --> TnI-as às 0-3h semelhante a 0-1h (RACE_IT, Annals of EM)

- Espondilolistese lombar --> Cirurgia descompressiva apenas não-inferior a adição de fusão aos 5 anos (BMJ)

- PCR pré-hospitalar --> Acesso intraósseo não superior a endovascular (BMJ)

- Entubação "acordada" --> Sulfato de magnésio poderá vir a ser útil (TACC)

- Trauma torácico --> Drenagem sem pressão pleural negativa poderá ser não-inferior (EJTES)

- Revisão e Reconciliação Terapêutica --> Sem clara redução de desfechos clínicos...mas sinal para (JAMA NO)

- Gonartrose --> Metotrexato benéfico...mas comparado com o melhor tratamento existente? (Annals of IM)

- DPOC --> Ventilação não-invasiva foi superior a oxigenioterapia de alto-fluxo (Crit Care)


🧾Receita

- Ética, academia e ciência (ACP - AIM)

- Insuficiência adrenal induzida por corticóide (incl. "como fazer desmame de corticóide") (European J Endocrinology)


🧐 Observações

- Revisões sistemáticas: Modelos de predicção clínica vs Juízo clínico | TEP tratado em ambulatório (de baixo-risco)

- Primários: Anti-Il6 na Gravidez | SOP e artemisinas | IA: Resumos médicos e Estimativa de idade gestacional | Rastreio oncológico nos EUA e custos | Encefalite e (ausência) de pleiocitose no LCR | Telemedicina e prescrição de antibióticos | S. de abstinência alcoólica e escalas de monitorização (mRASS-AW vs CIWA-Ar) | Antibióticos orais e toxidermia | Cultura de ponta de catéter e infecção | 1ª convulsão e referenciação

- Casos e séries: Delirium respondedor a BZD (catatonia) | PTI secundária a CMV | Tularémia ("febre do coelho") | Impella e AVC a longo-prazo | Cetamina e colangiopatia | Gota poliarticular e cetoacidose diabética | Amiodarona e granulomas medulares


Opiniões

- Perspectiva: Humildade clínica | Vacinas anti-vírus respiratórios, prova científica e políticas | Febre Oropouche e casos europeus


🌎FOAMed

Diverticulite não-complicada e antibióticos (TFP) | ECG, OMI e IA (RebelEM) | Sépsis: Gestalt vs Scores (First10EM) | Penicilina e (suposta) alergia (TFP) | Amilodoise cardíaca (CurbSiders) | Diagnóstico (RebelEM) e Sobrediagnóstico (First10EM) | Medicina baseada na prova (ou evidência) (First10EM)



 

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REVISÕES SISTEMÁTICAS de ECAs

Geral, Geriatria & Paliativos

17 ECAs / n=3.374 (11 a 1.089), Prospero/PRISMA, múltiplas bases de dados, CRoBT, 05/2024

P - Adultos em cuidado de penso

I - Penso de prata

C - Penso de iodo

O » Melhor tempo de cura - SMD -0.95 −1.62 a −0.28), I2=92%, p=0.005 (qualidade de prova moderada)

» Igual frequência de cura, controlo de dor e actividade anti-infecciosa* (qualidade de prova baixa)

*penso de prata possivelmente superior em alívio de dor e act. anti-bacteriana, mas incerto

Comentário: Não tenho coisas muito relevantes a dizer sobre tópico que geralmente deixo mais para os enfermeiros ou para os cirurgiões, mas, realmente, tenho ouvido dizer que os pensos com nitrato de prata são teoricamente superiores sobretudo para questões anti-infecciosas. Sem nunca ter estudado o assunto, fico feliz por, ao menos, haver prova de que estes pensos poderão ser superiores aos pensos de iodo. Os de iodo já tinham sido superiores a alguns (e, já agora, recentemente não-inferiores a clorexidina na anti-sepsia cirúrgica) e os de prata já tinham sido superiores a muitos outros. Agora, pelos vistos, os pensos de prata saem vencedores...calma, apesar de tudo, é uma população ultra-heterogénea e com poucos doentes por ensaio. Sem grandes certezas, acho que, pelo menos, podemos ter uma inclinação para um deles mas sem achar que escolher o outro é obra do diabo.

Conclusão: Na cura de feridas, pensos de prata foram tão bons ou melhores que de iodo.



 

ENSAIOS CONTROLADOS E ALEATORIZADOS

Cardiovascular

n~32.000, stepped-wedge, 9 SUs nos EUA, 2020-2021

P - SCA

I - Troponina-as "protocolo acelerado"

C - Troponina-as habitual

O 1º » IGUAIS doentes com alta do SU - 57.8 vs 59.5, aOR 1.05 (IC 95% 0.95 a 1.16)

2º » IGUAIS mortes ou EAM - 0.4 vs 0.4 %

Comentário: Isto é mesmo quase igual, e, embora esteja com vontade de usar a regra 0-1h, há a desvantagem de eventuais mais testes se tiver de fazer um 3º às 3h. Sem querer parecer polémico, também me parece que poderá levar a mais sobreutilização do SU, tendo em conta que, ao ficarem menos tempo no SU, os doentes podem sentir-se "convidados" a lá ir mais vezes - e isto num contexto em que a percentagem de doentes com suspeita de EAM é ínfima.

Conclusão: O protocolo acelerado de exclusão de SCA com TnI-as às 0-1h (comparado com 0-3h) foi equivalente.


Cirurgia, Ortopedia & MFR

n=230 de 267 (80%), 16 centros (ortopedia e neurocirurgia) na Noruega, 2014-2017(-2022)

P - Adultos 18-80A + Estenose lombar sintomática c/ espondilolistese =>3mm na zona de estenose

I - Cirurgia de descompressão apenas

C - Cirurgia de descompressão com instrumentos de fusão (enxertos, parafusos, etc.)

O 1º » IGUALzinho ganho de funcionalidade aos 5 anos - 63 % em ambos

    2º » Iguais outros desfechos

Comentário: Este é um tema confuso. Havia 3 ECAs com resultados positivos para descompressão apenas e 1 ECA positivo para descompressão com instrumentação de fusão. Este último foi feito nos EUA, numa realidade talvez singular e em que a taxa de cirurgia foi superior à média da maioria dos estudos e da prática. Acima de tudo, não foram medidos desfechos de longo-prazo. Agora, temos um ECA a medir desfechos após 5 anos num país nórdico (onde, geralmente, as coisas funcionam bem) e com não superioridade de fusão. Eu não estou muito dentro da área, mas diria que, por enquanto, a vitória vai para a descompressão apenas.

Conclusão: Na cirurgia para espondilolistese lombar, descompressão apenas parece igual a adição de fusão.


Doente crítico/urgente

n=1.732 de 1.771 (98%), pragmático, aglomerados de 4 equipas de ambulâncias de SAV, Taiwan, 2020-2023

P - Adultos 20-80A + PCR não-traumática em ambulatório + Sem C.I. a acessos EV/IO, sem DNR, ...

I - Acesso Intraósseo

C - Acesso Endovascular

O 1º » IGUALzinha sobrevivência à data de alta

2º » Igual retorno a circulação espontânea e sobrevivência com desfecho neurológico favorável

Comentário: Não tenho muito a dizer sobre isto a não ser que é mais uma hipotética exemplo de que as nossas pré-concepções acerca de hipótese de intervenções poderem estar incorrectas. Neste caso, a hipótese era a de que o acesso intraósseo seria superior...mas não foi. Okay, talvez com mais doentes teríamos um intervalo de confiança mais estreito...mas ainda assim, o ponto de estimativa parece estar bem no meio. Continuemos como estamos, então.

Conclusão: Acesso intraósseo não foi superior a endovascular na paragem cardiorespiratória extra-hospitalar.


n=76, duplamente-oculto, Tunísia, 2023

P - Entubação electiva + ASA I-II

I - Indução com magnésio EV SOMg 50 mg/kg em 100ml de NaCl 0.9% em 15 min pré-indução

C - Indução sem mangésio

O » Melhor estabilidade hemodinâmica e menos taquicárdia

Comentário: Estudo ainda muito embrionário e piloto, mas sinal para que seja estudado com mais doentes e em mais centros. A teoria é a de que o magnésio possa ajudar no relaxamento neuromuscular quando os bloqueadores neuromusculares estão contra-indicados, na chamada "awake intubation". Pode vir a ser uma realidade

Conclusão: Em ensaio embrionário, sulfato de magnésio pode ter melhorado entubação electiva de baixo-risco.


n=70, Índia

P - Trauma torácico (pneumotórax e/ou hemotórax)

I - Drenagem intercostal com pressão pleural negativa

C - Drenagem sem pressão pleural negativa

O 1º » IGUAIS dias com dreno - média de 4 dias em ambos

Comentário: Outro estudo embrionário, mais uma vez com resultados que poderão mudar prática. Será que é mesmo verdade que a pressão negativa seja desnecessária para a eficácia de drenagem? Aqui parece que sim.

Conclusão: Em ensaio embrionário, drenagem de hidropneumotórax sem pressão negativa parece não-inferior.


Geral, Geriatria & Paliativos

n=442, não-oculto, 8 serviços de Medicina Interna em 1 hospital comunitário, Japão, 2019-2022

P - Adultos =>65 anos + =>5 fármacos

I - Optimização terapêutica estruturada médico+farmacêutico, revisão do doente, fármacos e STOPP/START, discussão em equipa c/ algoritmo

C - Habitual (que inclui reconciliação terapêutica)

O 1º » IGUAIS/menos? mortes, visitas não-planeadas e re-hospitalizações a 12 meses - 49.3 vs 51.5%, HR 0.98(0.75-1.27)

2º » Igual/melhor? funcionalidade auto-reportada após 12 meses - 23.5 vs 29.1 %, p=.42

» Iguais/menos? EAs e EAs graves auto-reportados - 57.5 vs 59.2 %, p=.32 e 38.6 vs 40.1 %, p=.38

» Menos fármacos potencialmente inapropriados - 26.7 vs 37.4% / RRA 10.7%/NNT 9, OR, 0.45 [0.25-0.80], p=.007

Comentário: Há intervenções que serão sempre mais difíceis de provar, e esta é um exemplo. Para quem faz internamento e tem este tipo de intervenções (como eu) pode parecer óbvio que isto é uma mais valia, e lembro-me de vários exemplos em que os farmacêuticos me ajudaram a ajustar e até suspender medicações. Será sempre mais difícil provar benefício em grandes desfechos clínicos, e nunca com um ensaio de <500 doentes (fico na dúvida como é que não estimaram isso no número estimado de doentes). As 2 melhores revisões sistemáticas que encontrei (JGenInternMed 2020 e BMCFamP 2017) espelham isso mesmo (sendo que a de 2020 até encontra um sinal para menos mortalidade). Ora bem, neste caso, vemos clara tendência numérica para benefício mas sem chegar a significância estatística, mas parece-me que o ensaio não tinha poder para tal. O único desfecho claramente melhorado e com um grande NNT de 9 foi a redução de fármacos potencialmente inapropriados. Podiam ter ido a outros desfechos como dias de internamento, mas não fico insatisfeito com estes resultados.

Conclusão: Optimização terapêutica a adultos >65 anos hospitalizados levou a melhor medicação e quase melhores outros desfechos.


Imuno-mediadas

n=121 / 155 (207 rastreados), duplamente-oculto, 12 meses,15 centros no Reino Unido, 2014-2017

P - Gonartrose (critérios ACR) + OA imagiológica + Dor>3/10 em 3M + S/ resposta a analgesia (excepto GCT)

                Basal: AINEs PO 50% / AINEs tópicos 17.5% / Paracetamol 50% / Opióides 15 %

I - Metotrexato PO 1x / semana 10mg por 2S -> 15mg por 2S -> 20mg por 2S -> 25mg durante o resto do tempo

C - Placebo

O 1º » Melhor redução de dor (0/10) aos 6 meses - 6.4 -> 5.1 vs 6.8 -> 6.2, +0.79/10 (IC 95% 0.08 a 1.51), p=0.030

    2º » Quase igual? redução de dor aos 12 meses - 6.4 -> 5.3 vs 6.8 -> 5.8, +0.3/10

         » Melhores? índices de rigidez de joelho (Western Ontario e McMaster) aos 6M - por pouco...

         » Iguais EAs graves | EAs gerais? (suplementos apenas)

Comentário: Bem, acho que a metodologia resumida e os números falam por sim. Este é o caso paradigmático de que não nos devemos deixar entusiasmar por resumos, letras gordas e conclusões quando não conseguimos ler o artigo. Neste caso, felizmente, o artigo completo está disponível no site da Universidade de York. Se no início poderá parecer fantástico que o metotrexato também seja eficaz na osteoartrite do joelho (sim, eu gosto de chamar osteoartrite - crucifiquem-me!), há vários sinais de alarme antes de chegarmos aos números: i) apenas 75% dos rastreados foram incluídos (viés de selecção possível) e, desses, apenas <80% chegaram ao fim dos 12 meses de segumento (viés de selecção quase certo), o que se reflecte na tabela 1 das características basais (embora os autores dizem não haver "imbalances", vendo a tabela consigo ver algumas características "pouco balanceadas" entre os dois braços), ii) exclusão de doentes que fizeram corticóides incluindo injecções articulares, iii) não definiram o que seria uma diferença clinicamente significativa e iv) não incluiram os desfechos de segurança no artigo primário (ficou para os suplementos). Chegando aos números, vemos que houve algum benefício na redução de dor após 6 meses mas tenho dúvidas se 0.8/10 é uma diferença clinicamente significativa. Mais do que isso, aos 12 meses a diferença atenua-se para uns míseros +0.3/10, sendo que aqui estou bastante confiante para dizer que não é clinicamente significativo. Na discussão ainda citam o recente ECA de MTX na OA da mão, onde a diferença clínica foi de magnitude semelhante...o que não quer dizer que seja clinicamente significativa. Por último, tudo bem bem que não houve mais EAs graves, mas gostaria de ver melhor a tabela para confirmar que eventos adversos aconteceram para conseguir comparar com esta (pouca) diferença clínica.

Conclusão: Na gonartrose, o metotrexato pode ter sido superior a placebo em reduzir dor aos 6 meses.


Pneumologia

n=225, ITT, NIT c/ margem 9%, 1 hospital terciário, China (Yangzhou), 2018-2022

P - EA-DPOC + Acidose respiratória e hipercapnia moderados (pH 7.25–7.35; pCO2≥50 mmHg)

I - Cânula nasula de alto-fluxo (HFNC)

C - Ventilação não-invasiva (VNI)

O 1º » MAIOR falência de tratamento - ITT - 25.7 vs 14.3, ARA 11.4% (0.25 – 21.20 %) / NNH 9, p=.033

PPA - 25.5 vs 13.8, ARA 11.7% (0.48 – 22.60 %) / NNH 9

2º » Mais entubações - 14.2 vs 5.4 %, ARA 8.8 % / NNH 11, p=.026

Iguais mortalidade aos 28 dias, UCI, duração de itnernamento e frequência de mudança de intervenção

Comentário: Mais uma para a eterna disputa "HFNC vs NIV". Têm sido sobretudo comparadas na insuficiência respiratória geral ou por causas específicas como COVID-19, mas ainda não tinham sido comparadas em ECA na DPOC. Pois aqui vem, na 1ª comparação (com poucos doentes e apenas 1 hospital, diga-se), o oxigénio de alto fluxo parece falhar redondamente. Mais falência em 1 doente por cada 9 é muita falência, assim como mais 1 entubação por cada 11 doentes. Tudo bem que o resto parece ter sido igual...mas se leva a mais falência (e é mais caro, diga-se) valerá a pena?

Conclusão: Na exacerbação de DPOC com hipercapnia e acidose moderadas, oxigénio de alto-fluxo inferior a VNI.


 

NORMAS DE ORIENTAÇÃO CLÍNICAS - GUIDELINES

Endocrinologia

As sociedades europeia e americana de endocrinologia juntaram-se para este conjunto de recomendações:

  • Desmame desnecessário quando corticoterapia por <3–4 semanas, independentemente da dose.

  • Quando >3–4 semanas --> Redução gradual p/ abstinência e promoverrecuperação do eixo HHA.

  • Se >40 mg (equivalente a prednisona) --> redução semanal de 5–10 mg.

  • Se <40 mg (eq. a PDN) --> reduções menores

    • Ex 1: Se 10-20mg --> 2.5 mg a cada 1–4 semanas

    • Ex 2: Se <10mg --> 1 mg a cada 1–4 semanas

  • Se corticóide de acção prolongada (p.e., dexa) --> mudar p/ acção curta (p.e., PDN ou HidroC) EU: tenho dúvidas quanto a este...há quem defende "auto-desmame" de dexametasona

  • Se atingida dose fisiológica diária (4–6 mg de PDN) --> redução adicional ou cortisol sérico

    • Redução gradual adicional + Monitorizar sintomas de insuficiência adrenal ou

    • Cortisol sérico matinal > 10 ug/dL --> suspender

    • Cortisol sérico matinal < 10 ug/dL --> redução gradual e teste repetido semanas/meses depois

  • Não abordados regimes em dias alternados, que são usados ​​por alguns clínicos.

  • Testes dinâmicos de rotina (p.e., estimulação da ACTH) não são recomendados por rotina (apenas se incerteza)

  • Ainda --> Diagnóstico e Tratamento da crise adrenal em insuficiência adrenal induzida por corticódies --> Recomendações de dose para ajuste a stress fisiológico (incluindo cirurgia) --> Riscos de supressão adrenal com corticóides inalatórios, tópicos ou intra-articulares.


Geral, Geriatria & Paliativos

Comecei a ler com algumas reservas (face ao que a ACP e AIM nos têm habituado neste tipo de temas) mas não desgostei. Puseram o tónus na humildade e liberdade científica, sem os erros proto-autoritários de muitos e até citaram a feliz frase do Anthony Kennedy (ex-juíz do supremo) "o remédio para discurso falso é discurso verdadeiro".

  1. Posição 1: Humildade diante da incerteza inerente ao processo científico, respeito colegial por visões concorrentes e abertura para debates ponderados e rigorosos são essenciais para a evolução da ciência. A visão contrária ("contrarian view") de hoje pode se tornar a orientação clínica de amanhã.

  2. Posição 2: Valores científicos, incluindo objetividade, honestidade e abertura, devem ser cultivados, ensinados a clínicos e cientistas em treino e modelados por médicos e porta-vozes científicos.

  3. Posição 3: As instituições e organizações de saúde devem criar e sustentar uma cultura que promova o conhecimento e apoie normas de abertura, independência, objetividade e cepticismo científico saudável.

  4. Posição 4: Educação pública, saúde e alfabetização em saúde devem ser promovidas para que doentes e público tenham uma melhor compreensão do processo científico e respectivas incerteza associada e natureza evolutiva dos avanços médicos. Desinformação e informação enganosa devem ser combatidas, mas os termos “informação enganosa” e “desinformação” devem ser usados ​​com cuidado.

Bastante equilibradas estas posições. Agora resta saber se são cumpridas na prática!


 

ESTUDOS OBSERVACIONAIS

REVISÕES SISTEMÁTICAS COM ESTUDOS OBSERVACIONAIS (com ou sem ECA)

Doente crítico/urgente

10 estudos (coorte e ECAs), n~2.700, TEP tratado em ambulatório, triagem por escalas de risco

Nesta meta-análise de alguns estudos mas, na verdade, não muitos doentes (~270/estudo), verificou-se que é bastante seguro proceder ao tratamento de TEP em ambulatório em doentes de baixo-risco identificado por escalas como sPESI e Hestia. Muito bom sabê-lo...mas fico ainda com pulga na orelha se não haverá uma forma de triar também doentes que pontuem risco intermédio desde que estáveis e sem disfunção ventricular direita (facilmente identificada para serviços de urgência com experiência em POCUS).


Meta-investigação & MBE

41 estudos (39 elevado risco de viés), PubMed/Medline/Embase/CINAHL, ferramente de predicção de viés

Estudo relevante foi buscar os estudos em que se comparavam escalas de prognosticação com juízo clínico, incluindo escalas que conhecemos bem como CHADSVASC, HAS-BLED, APACHE, San Francisco Syncope Rule e Palliative Prognostic Score. Observou-se uma "curva de Característica de Operação de Receptor" (curva ROC ou "C-statistic") de 0.73 para as escalas e 0.71 para juízo clínico (não óptimo para nenhum deles, mas quase igual entre ambos). Dos 29 estudos que providenciaram métricas de discriminação (124 no total) passíveis para comparação entre escalas e juízo clínico, metade não se associaram a diferenças, 25% favoreceram escalas e 28% favoreceram juízo clínico. Como podemos ver, as escalas são muito mais limitadas do que pensamos e o nosso juízo clínico é, no mínimo, equiparável.

 

PRIMÁRIOS - SUB-ANÁLISE / COORTE / CASO-CONTROLO / INQUÉRITOS / A. ECONÓMICAS

Cardiovascular

n~1.100, subanálise do STRONG-HF (multicêntrico e internacional), 2018-2022

Acho que já quase todos ouviram falar deste ensaio (STRONG-HF, publicado no Lancet em 2022) onde se demonstrou finalmente em ECA que iniciar a terapêutica modificadora de prognóstico da ICFEr o mais rápido possível melhora os desfechos a curto- e longo-prazo (sou mais céptico em relação ao aumenter precocemente até à dose máxima tolerada pois não foi isso que foi provado, mas isso é outra conversa). Nesta subanálise foram ver que os parâmetros de descongestão a longo-prazo também foram melhores, o que acho que não espanta muita gente. Mas fica a dica!


Doente crítico/urgente

CIWA-Alcohol revised w/ the mRASS-AW for alcohol withdrawal: length of stay and complications | CJEM

n~1.000, coorte retrospectiva "antes e depois", Canadá (Vancouver), 2012-2014 / 2014-2020

O mRASS-AW é bastante mais simples que o CIWA-Ar, pelo que bastaria ser equivalente para o abraçarmos. Neste caso, o tempo de estadia (desfecho primário), delirium, UCI e mortalidade foi igual, mas o mRASS-AW associou-se a menores complicações pós-admissão (6 vs 3 %).


Endocrinologia

Não costumo trazer estudos tão embrionários e experimentais pois a esmagadora maioria das hipóteses embrionárias são "desprovadas" com estudos de maior qualidade. No entanto, pela originalidade, isto serve mais como curiosidade que outra coisa. Fica a nota para futuro estudos de maior qualidade.


Geral, Geriatria & Paliativos

rastreio de 5 neoplasias (mama, colo do útero, próstata, CCR e pulmão), análise de custo total de rastreio, 2021, EUA

Não costumo trazer análises de países específicos que não de Portugal, mas este estudo pareceu-me importantíssimo e relacionável e, acima de tudo, veio acompanhado de um editorial do Gilbert Welch, um conhecido internista americano autor de, pelo menos, dois dos livros mais relevantes sobre saúde ("Less medicine, more health..." e "Overdiagnosis..."). Pois bem, o custo total de rastreio SÓ NUM ANO nos EUA foi 43 biliões de dólares, e isto é uma subestimativa pois não inclui os testes e seguimentos seguintes relacionados com o sobrediagnóstico. A esmagadora maioria destes custos veio do rastreio do CCR e das colonoscopias, apesar das dúvidas existentes sobre a sua eficácia em reduzir mortalidade por todas as causas (recente NordICC e outros), e a grande fatia de medicina privada. Aproveitem para conhecer o excelente trabalho do Gilbert Welch. Eu cá já tenho os 2 livros mencionados a caminho.


IA

n=400, coorte prospectiva, Zambia e EUA

Nesta coorte de gravidezes não-complicadas de 1º trimestre, a utilização de ecografia com inteligência artificial por médico novato em treino e sem experiência de ecografia foi equiparável a ecografia por especialista para estimar a idade gestacional. Não é a minha área mas achei impressionante e com grande poder de utilidade futura.


n=10 resumos / 8 médicos, coorte transversal, GPT 3.5 e 4, 2023-2024


Imuno-mediadas

n=25, coorte retrospectiva, 2 centros no Reino Unido, 2020-2022

Nesta coorte de grávidez no 2º e 3º trimestre com COVID-19 em que foram usados anti-Il6 houve alguns desfechos negativos, como parto prematuro na maioria. É difícil perceber se os desfechos pioraram pelo COVID ou pelos antagonistas usados, mas fica o sinal. Precisamos de estudos maiores e, talvez, estudar em populações mais estáveis e menos mórbidas como casos de utilização destes fármacos em doença imuno-mediadas.


Infecciologia, Microbiologia & Antimicrobianos

n~100.000, coorte retrospectiva, registos electrónicos e ICD-10, EUA/Cleveland

Neste estudo bastante limitada pelo método de pesquisa (código ICD-10 para infecção respiratória em registos), observou-se maior associação a prescrição de antibióticos em telemedicina que em consulta presencial, com uma diferença relevante de 58 vs 43 %. Mesmo nos casos em que os médicos faziam consultas nos 2 modos, houve mais prescrição. Na sinusite a prescrição inclusive duplicou! Eu sou favorável a um modo cada vez mais flexível de trabalho e que passa seguramente pela telemedicina. Mas temos de ser cautelosos com desvantagens como esta. Agora, num mundo de médicos com bom juízo e raciocínio clínico, não vejo porque as prescrições têm de aumentar. Será que, em parte, não haverá uma maior selecção para médicos descuidados na telemedicina? Urge estudá-lo e combatê-lo!


n=40, coorte retrospectiva, multicêntrico em 10 países da Europa (incluindo Portugal)

O isavuconazole e o voriconazole estão ambos recomendados para o tratamento da aspergilose cerebral, apesar de apenas termos dados em estudos clínicos para o voriconazole. Neste estudo europeu em que o isavuconazole foi iniciado em 1ª-linha em 10 de 40 casos (nos outros foi usado depois de falência terapêutica / toxicidade), os desfechos foram indirectamente equivalentes aos do voriconazole na coorte francesa CEREALS, com taxa de sucesso de 70%, mortalidade aos 3 meses de 18% e 7.5% de eventos adversos.


n>20.000 / ~87.000, nested case-control, Ontário/Canadá, 2002-2022

Nesta coorte de milhares de adultos idosos que foram ao SU ou hospitalizados em contexto de reacção adversa relacionada com antibiótico, os mais associados a toxidermia foram as cefalosporinas e sulfonamidas (sulfametoxazole do co-trimoxazol), sendo que as penicilinas, quinolonas e nitrofurantoína também tiveram a sua relação (isto sempre em comparação com macrólidos e através de odds ratio, que sobrestima um pouco a real diferença para quem não tá habituado à diferença entre OR e RR).


n=427 (» 150 vs 150), coorte retrospectiva, propensity score, 29 centros em França, 45 especialistas

Desta coorte de 417 doentes críticos sem bacteriémia e micro-organismo potencialmente patogénmioco isolado em ponta de catéter removido, foram emparelhados 150 que iniciaram antibioterapia dirigida com 150 que não iniciaram. Observou-se iguais infecções às 48 horas e 30 dias e mortalidade (na verdade, até numericamente menor mortalidade nos que não iniciaram...sim, calma, pode muito bem ser viés de selecção de "doentes menos doentes"). Isto de não valorizar individualmente culturas de ponta de catéter já fazia parte da minha prática, mas agora fico mais convencido a não o fazer (e pedir cultura simultânea de veia periférica).


Neurologia

n=597, coorte retrospectiva, EUA

A pleiocitose no líquido cefalorraquidiano (=>cél./uL) é um dado importante a favor de encefalite...mas, nesta coorte retrospectiva, a sua ausência estava presente em 25% de todos os casos e em 24% das encefalites por HSV-1. Se a suspeita for forte, talvez não seja mau iniciar aciclovir independentemente deste achado.


n~10.000, coorte retrospectiva, Austrália/Melbourne, 2007-2018

Interessante. Nesta coorte de doentes que foram a urgência de hospital e ficaram com agendamento de consulta, cerca de 80% foram à consulta, dos quais a maioria tiveram consulta precoce. Encontrou-se associação de consulta com menos admissões hospitalares e co-morbilidades psiquiátricas mas mais admissões por convulsão. Ainda, observou-se melhores desfechos gerais com consulta precoce comparado com tardia. Algumas características associadas a não ida a consulta foram patologia psiquiátrica, diagnóstico não-epiléptico e consulta apenas >14 dias depois de agendamento. Estudo embrionário pois apenas descritivo do que aconteceu, mas um bom começo.


n~10.000, coorte retrospectiva "temporal", EUA, 1993-2015

Nesta coorte em que a grande maioria de AVC foram isquémicos, observou-se melhoria com o tempo na mortalidade de AVC isquémico mas não melhoria na mortalidade de AVC hemorrágico. Foram estudadas algumas co-morbilidades associadas a essa maior mortalidade...mas não estudaram trombólise. Tendo em conta que a trombólise é cada vez mais usada e as duas grandes controvérsias são a maior hemorragia intracraniana e maior mortalidade, ficaria muito interessado em saber essa relação. Fica a nota.

 

CASOS CLÍNICOS e SÉRIES DE CASOS

Cardiovascular

Amiodarona há 18 meses e desenvolveu-se pancitopénia. Biópsia medular revelou granulomas. Suspensão de amiodarona levou a resolução da pancitopénia. Evitar amiodarona a longo-prazo? Simples.


Doente crítico/urgente

Caso estranho mas interessante de AVC 5 meses após Impella do enxerto (que tinha um coágulo). Lembrete para olhar sempre os desfechos a longo-prazo e não ficar só pelos primeiros minutos / horas.


Gastroenterologia & Hepatologia

Mais um efeito de cetamina em doses tóxicas / recreativas: colangiopatia por esclerose biliar.


Hematologia

PTI secundária a CMV é muito rara (os agentes virais habituais são mais HBV e HCV) mas pode acontecer, parece que sobretudo em imunocompetentes. Além do habitual corticóide (e/ou IgEV), fica a dúvida se os antivirais têm lugar. Neste caso, decidiu-se que sim.


Imuno-mediadas

Manifestação de artrite gotosa grave como artrite poliarticular e cetoacidose diabética nesse contexto inflamatório tornaram a abordagem mais complexa, em parte pelo risco de corticoterapia, e usaram anakinra. Interessante.


Infecciologia, Microbiologia & Antimicrobianos

É verdade que a tularémia (Francisella tularensis) ou "febre do coelho" é rara em Portugal, mas em 2022 foi publicado o 1º caso de transmissão autóctone no nosso país, pelo que atentai ao panorama estaduniense para que possamos estar preparados.


Neurologia

Importante para quem (como eu) está habituado a pensar que benzodiazepinas agravam o delirium. Não esquecer os casos de delirium respondedor a BZD: catatonia (este caso), álcool (claro) e agitação terminal (para quem lida com estes doentes, também não é estranho). A catatonia envolve alterações de moviemtno e discurso e pode apresentar-se como delirium hipoactivo (este caso). Tem várias causas incluindo demência de corpos de Lewy ( este caso).


 

OPINIÃO


 

PERSPECTIVA

Geral, Geriatria & Paliativos

Revisão sobre esta característica relevantíssima tanto no trabalho como na vida e da a qual todos passamos por momentos de varredura para debaixo do tapete (uns mais e outros, os virtuosos, menos). Fala-se de 5 domínios:

  1. Aprendizagem e crescimento profissional

  2. Navegar pelos erros

  3. Tolerância à incerteza

  4. Confiança e confiar

  5. Trabalho em equipa e comunicação


Infecciologia, Microbiologia & Antimicrobianos

Já há casos identificados em Itália de migrantes cubanos, e espera-se um grande fluxo de migrantes da América Latina no final deste ano e início do próximo em Roma no contexto do Jubileu da Igreja Católica. É um arbovírus talvez não muito diferente dos outros (e menos grave? não sei), mas temos de estar atentos.


Meta-investigação & MBE

A nossa Mariana Barosa a dar mais cartas na Epidemiologia e Saúde Pública, com 2 dos mais reputados e relevantes investigadores do momento. Orgulho (do bom)! Quanto ao tema...precisamos de mais e melhor prova científica e, sobretudo, as nossas políticas de saúde deveriam estar de acordo com essa prova.


 

FOAMed


Cardiovascular

Impressionante acuidade deste modelo, tão bom ou melhor (não chega bem a ser melhor) que os especialistas em ECG Steven Smith e Pendell Meyers. Se há coisas onde a IA entrará facilmente é na detecção de padrões, e o ECG é isso mesmo. Eu cá experimentarei a aplicação.

427 Kittleson Rules - Cardiac Amyloidosis | Curbsiders

Bom resumo com a excelente cardiologista e educadora médica Michelle Kittleson.


Cirurgia, Ortopedia & MFR

#370 Antibiotics or no antibiotics for acute diverticulitis, that is the question! | Tools for Practice

Mesmo que nos custe a engolir na prática a resposta é (no doente certo) "não". Se no Canadá o faziam sem grandes problemas (como presenciei) porque não o fazemos nós também?


Doente crítico/urgente

Gestalt is better than decision tools for identifying sepsis | First10EM

Não só não foi melhor como provavelmente a superioridade do gestalt foi provavelmente subestimada. É desta que (alguns) paramos de usar escalas complicadas que nos fazem perder tempo?


Geral, Geriatria & Paliativos

É bem verdade...muitas (tantas) vezes custa, mas temos de parar, respirar funfo e reflectir.


Infecciologia, Microbiologia & Antimicrobianos

Nada de muito novo para quem anda actualizado (e nos lê / ouve), mas aqui vai resumido pelo excelente TFP.


Meta-investigação & MBE

Na maioria dos casos, sim.


Excelente! Isto devia ser mostrado em qualquer sala de aula da faculdade medicina ou introdução a journal club.


 

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