Começando por cima, mais uma prova de como a forma como comunicamos pode não ir totalmente de encontro à verdade (= spin), como constatamos numa percentagem considerável das RS sobre tratamento antiplaquetário no síndrome coronário agudo.
Seguindo em frente, no conjunto de ensaios sobre pronação consciente (awake prone positioning) no COVID-19 parece haver motivo para continuar, no AVC de tempo indefinido (wake-up stroke) tratado com trombectomia e/ou trombólise motivos para reflectir e na imunoterapia sem expressão de PD-L1 motivos para repensar.
Marchando e continuando, temos que telemonitorização numa equipa sem médicos foi igualmente eficaz a reduzir a pressão arterial quando comparado com consultas médicas, uma nova equinocandina de injecção semanal (rezafungina) aparentemente não-inferior, colistina em monoterapia para micro-organismos ultra-resistentes não superior mas também não inferior e ensino de raciocínio clínico na faculdade de medicina como assunto literalmente a reter.
Pausa para actualização da GOLD COPD para 2023 como algumas actualizações que pouco mudam.
Deslizando, actualização das normas CONSORT para comunicação de desfechos num ECA, oxigénio quando não é necessário pode piorar desfechos, síndrome long-covid quando comparado com grupo controlo torna-se controverso como entidade em si, duplicações em ciência (adivinhem…COVID-19), a (não) diferença entre administrar antibióticos orais com ou sem febre, a grande reflexão sobre anamnese / exame objectivo e sua relevância clínica e o grande tema da publicação científica, seja pela (discutível) utilidade da revisão por pares ou pela fraudulenta fabricação de ciência a pedido.
APP | Análise por protocolo | ARA - Aumento de Risco Absoluto | ECA - Ensaio clínico aleatorizado | ITT - Intenção de Tratar | MBE - Medicina baseada na evidência | NNH - Number needed to harm | NIT - Noninferiority trial | NNT - Number needed to treat | RRA - Redução do Risco Absoluto | RS - Revisão Sistemática
META-REVISÃO
Meta-investigação e MBE
De 185 resumos de revisões sistemáticas no tópico publicadas entre 2006 e 2020 (MEDLINE e Embase), cerca de 30% estão associadas a spin. Pode não parecer muito, mas eu argumento que é muitíssimo. Para o médico comum e atarefado que todos somos e que muitas vezes só tem tempo de ler o artigo na diagonal, aproximadamente 1 em cada 3 resumos transmitiu a informação de forma enviesada. Problema dificílimo de resolver. Uma coisa é certa, temos de ser exigentes com o que lemos (incluindo o que leem aqui).
REVISÕES SISTEMÁTICAS de ECAs
COVID-19
17 ECAs (12 com baixo risco de viés, 1 quasi-randomized), n 2931 (40 - 501), 2020 - 4/03/2022
Parece que a utilização de awake prone positioning diminuiu a entubação oro-traqueal com alguma certeza (em média menos 55 por cada 1000 doentes, com IC entre 19 e 87). A redução em todos os outros desfechos como mortalidade é bastante mais incerta e discutível. Os ECAs são todos bastante pequenos e a revisão inclui um não-ECA (quasi-randomized), pelo que tenho cautela em assumir estes resultados. No entanto, fica a boa nova de que uma intervenção simples e que até pode ser realizada autonomamente pelo doente consciente e orientado seja potencialmente eficaz.
Nota: Se pudesse estudar esta intervenção focar-me-ia principalmente no desfecho de menos dispneia e desconforto para o doente, que por si só poderá justificar recomendação generalizada.
Neurologia
7 ECAs (5 tPA e 2 trombectomia), n 980 (775 e 295), 2012 a 2020, metanálise da Cochrane
Revisão sistemática sobre a metanálise já publicada na Cochrane em 2021 sobre AVC de tempo indeterminado (wake-up stroke). Destes 7 ECAs limitados pelo seu tamanho reduzido, critérios de diagnóstico diversos e suspensão precoce (6 dos 7!), vemos que existe eficácia sustentada na melhoria funcional (desfecho de mRS<3) com a trombectomia mas muito menos convincente com a trombólise. Não houve diferença estatística na mortalidade nem na hemorragia intracraniana, mas não havia poder amostral necessário para tal. As dúvidas persistem.
Oncologia
Imunoterapia sem vantagem quando expressão de PD-L1<1% e vantagem marginal quando <10%.
ENSAIOS CONTROLADOS E ALEATORIZADOS
Cardiovascular
n 3.071, pragmático, aglomerados de 21 centros de CP nos EUA
P - HTA moderada (PA > 150/95mmHg)
I - Telemonitorização coordenada por farmacêutico clínico ou enfermeiro practicante
C - Consultas com médicos e assistentes médicos
O 1º » IGUAL redução na PA - menos 19/10mmHg vs 18/10mmHg
Comentário: Em Portugal não há sequer profissões como estas, muito menos com os mesmos direitos legais, e existem sempre vozes bastante críticas a dar mais autonomia a não-médicos. Acho que este ECA é uma boa prova de como nem sempre é preciso a mão divina do sr. dr. médico.
Infecciologia, Microbiologia & Antimicrobianos
n 199, duplamente oculto, multicêntrico em 66 centros de 15 países, não-inferioridade
P - Candidémia invasiva ou candidémia (sinais sistémicos e confirmação micológica)
I - Rezafungina IV 1x/semana (2-4S)
C - Caspofungina IV qd (até 4S)
Margem de não-inferioridade = 20%
O 1º » Não-inferior cura clínica (clínica, radiológica e micológica) - 59 vs 61 %, IC -14.9 vs 12.7 %
2º » Não-inferior (?) morte aos 30 dias - 24 vs 21 %, IC -9.7 vs 14.4 %
» EAs - 91 vs 85 %
» EAs graves - 56 vs 53 %
Comentário: Fico muito céptico em relação a este ECA. Um sinal de ARA de 3% de mais morte aos 30 dias com rezafungina não é nada desprezável, pois pode significar mais 1 morte por cada 33 doentes tratados. Não me parece que a vantagem competitiva de uma injecção semanal seja suficiente para justificar arriscar mais mortes, menos cura e mais efeitos adversos. Principalmente quando temos hipóteses em formulação oral (azóis) para uma fase posterior de maior estabilidade.
Discussão interessante: Todd Lee no Twitter: "...If you accept up to 15% worse death as being NI...."
n 423 (de 464), ITT modificado, duplamente oculto, multicêntrico e multicontinental, 2012-2020
P - Pneumonia ou Bacteremia por A. baumani XDR, P. aeruginosa XDR ou EPC
I - Colistina 5mg/kg + 1.67mg/kg tid
P - Colistina + Meropenem 1g tid
O 1º » Sem diferença estatística na Mortalidade 28d - 43 vs 37 %, p 0.17
2º » Sem diferença estatística na Falência (clínica e microbiológica)
» Sem diferença estatística a nos EAs - menos LRA e Neurotoxicidade, mais Hipersensibilidade
Comentário: A prática até agora era a de privilegiar o tratamento destes agentes extensivamente resistentes com terapêutica dupla (quando não temos outros antibióticos como ceftazidima/avibactam ou ceftolozano/tazobactam) com base em sinal de sinergia in vitro, mas essa hipótese não tinha sido testada…até agora. Ok, não foi demonstrada superioridade de nenhum deles…mas, espera…isto significa que são iguais? Pois, não foi um ensaio de não-inferioridade. Na verdade, existe um sinal numérico preocupante de aumento de mortalidade, que mesmo que seja provavelmente exagerado podia mesmo ser verdadeiro caso o tamanho amostral fosse superior (ensaios pequenos normalmente exageram a magnitude do benefício absoluto mas também têm mais dificuldade em excluir a hipótese nula). Há quem argumente que se fosse um ensaio de não-inferioridade não a teria demonstrado (dependeria, claro, da margem de não-inferioridade escolhida…mas com um ARA de 6.5% e uma extremidade superior do IC de 15.8%, há poucas dúvidas). Concluindo, parece-me que este ECA não exclui o malefício da colistina em monoterapia.
Meta-investigação & MBE
n 83, não-oculto, centro único na Alemanha
P - Estudantes de Medicina do 4º ano
I - Feedback sobre competências em raciocínio clínico além de exames
C - Apenas exames
O » MELHOR prestação no teste de retenção
Comentário: Obrigatório começamos a colocar os assuntos relacionados com raciocínio clínico e medicina baseada na prova como sustentáculos basilares das faculdades de medicina!
NORMAS DE ORIENTAÇÃO CLÍNICAS - GUIDELINES
Infecciologia, Microbiologia & Antimicrobianos
Pneumologia
Novidades? Num primeiro vislumbre parece que sim, mas na prática parece-me que pouca coisa mudou. Novos conceitos na definição de DPOC e DPOC exacerbada e modificação da classificação ABCD para ABE, mas a abordagem é relativamente igual. Leiam pelos vossos olhos.
ESTUDOS OBSERVACIONAIS
RS COM ESTUDOS OBSERVACIONAIS (com ou sem ECAs)
Infecciologia, Microbiologia & Antimicrobianos
7 estudos com 12 coortes prospectivas, n 34.178 gravidezes (737 com artemisinina e 1076 sem)
Mais EAs numéricos (incluindo potencial embriotoxicidade) com tratamento padrão actual sem artemisinina (quinina + clindamicina), apesar de não estatisticamente significativo.
Comentário: Boa notícia! Contraria a contra-indicação actual contra tratamentos de artemisinina no 1º trimestre pela suposta embriotoxicidade. Pelos vistos, até poderá ser o oposto.
1 ECA e 40 observacionais, n 1918 (ECA com n=21)
Baixa certeza na eficácia da clindamicina e da imunglobulina endovenosa a reduzir a mortalidade, apesar da suposta grande magnitude de benefício. Precisamos de ECAs!
Meta-investigação & MBE
Muito interessante. Actualização do CONSORT 2010 para as recomendações de comunicar desfechos num ensaio clínico. Todo o clínico praticante deveria estar familiarizado com estas regras para não só poder interpretar melhor a qualidade dum ensaio como também reconhecer o selo de qualidade. Vejam pelo menos a tabela 1 para perceberem o que foi actualizado. Atenção, não acho obrigatório dominar todos os detalhes especificados (que eu obviamente não domino), mas pelo menos saber que a qualidade aumenta quando estes estão presentes.
Neurologia
Uso de suportes auditivos e implantes cocleares associados a atraso no agravamento da disfunção cognitiva a longo-prazo. Não nos cansemos de o repetir aos ouvidos de quem não quer ouvir!
SUB-ANÁLISES DE ECAs
Oncologia
O HER2CLIMB já nos tinha demonstrado que o bloqueio duplo de HER2 (o novo tucatinib aliado ao conhecido trastuzumab) aumenta a sobrevida global no carcinoma da mama refractário. Nesta análise, confirma-se o aumento da sobrevida global até nos doentes com metástases cerebrais.
COORTE, CASO-CONTROLO & COORTE TRANSVERSAL
Cirurgia, Ortopedia & MFR
coorte retrospectiva, n~350.000, cirurgias electivas >120min, 42 centros dos EUA, 2016 a 2018
Administração de oxigénio quando saturação de oxigénio >92% associada a mais LRA, lesão miocárdica e lesão pulmonar. Não sei se este sinal de malefício é real e acho que até agora ainda não foi bem provado. Acho que as características deste estudo também não o provam. Uma coisa é certa: não é o primeiro estudo a chegar a esta associação e acho que podemos pelo menos dizer que não há benefício em dar oxigénio quando o doente não precisa, nem que não seja só pelo consumo de recursos (e infelizmente ainda tenho bem viva na minha memória a imagem daqueles bancos em janeiro de 2021 com escassez de oxigénio em que tivemos de seleccionar doentes com insuficiência respiratória que “mereciam” oxigénio…).
COVID-19
Este estudo deveria ser amplamente disseminado por toda a comunicação social. Os sintomas sequelares pós-virais foram na verdade mais prevalentes no grupo com teste SARS-CoV-2 negativo (40 vs 50 %). Atenção, não valorizo sequer este sinal de melhor desfecho. Destaco, sim, a própria conclusão dos autores que me parece perfeita: “These findings emphasize the importance of including a concurrent control group when studying sequelae of COVID-19 illness.”
n 1054, análise retrospectiva de registos de revisões sobre COVID-19 no PROSPERO no ano 2020
Dos 1054 registos, 138 são duplicados, o que representa 13% da totalidade. Não é lá muito bom sinal, apesar de não ser a maioria. Pior é o facto de menos de metade dos autores ter respondido e a pouca segurança na justificação dos que responderam.
Infecciologia, Microbiologia & Antimicrobianos
n 44 (de 52), estudo prospectivo, 3 centros de Amesterdão, 2019 a 2021
Não houve diferença na concentração sanguínea (AUC) de amoxicilina ou ciprofloxacina em doentes com ou sem febre. Foram seleccionados doentes com antibioterapia endovenosa por infecção aguda e cuja infecção seria passível de transição para amoxicilina ou ciprofloxacina oral e excluídos doentes com clearance renal e hepática reduzida. Já havia uma RS de 2019 com resultados limitados, e agora temos o contributo extra deste estudo prospectivo, com limitações. Mas dá que pensar onde está o ónus da prova neste momento: provar que terapêutica oral não tem influência na eficácia em tratamento de infecções simples de doentes não-críticos, ou o contrário? Diria o segundo.
Consultoria por equipa de cuidados paliativos diminuiu a utilização de antibióticos em doentes em fase muito terminal de vida (tempo de vida médio de 12 dias) de 88% para 74%. Ainda assim e sem conhecer a percentagem habitual média, parece-me um número muito elevado.
Meta-investigação & MBE
Análise dos LR (razões de verossimilhança) de sinais e sintomas do TRCE-EBCD do JAMA
» 250 LR positivos (LR+) e 241 LR negativos (LR-) em 67 diagnósticos
» A média foi de 3.4 para LR+ e 0.59 para LR-
Definiram LR clinicamente relevantes se LR+ >5 ou LR- <0.2 (definição da literatura, não consensual)
» Mais LR positivos relevantes que negativos - 28 vs 12%
» Mais LR positivos “superrelevantes” que negativos (LR+>10 e LR-<0.1) - 12 vs 5%
Comentário: Destaco várias coisas interessantíssimas com este estudo. Primeiro, a tipologia de publicação. Os autores decidiram publicar um artigo num blogue que não estavam a conseguir publicar em nenhum jornal. Isto dá que pensar. Com os vários menos interessantes (para ser educado) trabalhos a serem publicados nos jornais de maior impacto, como é que este não é?? Passará o futuro da publicação por isto? A maioria de nós concordamos que deveria ser evitável, mas não havendo alternativa…não sei. Em segundo, os resultados super interessantes. Nós tendemos a sobrevalorizar o exame objectivo, sobretudo os achados negativos, mas como vemos aqui a grande maioria destes sintomas e sinais não são boas ferramentas de diagnóstico. É claro que a chave estará na interpretação conjunta de vários individuais, mas ainda assim observo muito dogma cognitivo arrogante em relação a certos conceitos (muitas vezes crenças) de diagnostistas que acham que apenas por terem decorado o livro de semiologia estão certos. Dada esta vasta incerteza, diria que temos de ser humildes conosco, com os nossos colegas e em última instância com os nossos doentes.
Ok, pode muito bem haver aqui algum cherry picking pois isto trata-se de um estudo observacional. No entanto, não deixa de ser interessante como a grande (para não dizer esmagadora) maioria dos estudos preprint são inalterados depois do peer-review. Mais um contributo para a reflexão em torno deste problema de publicação tão difícil e para o qual não parece haver uma solução óbvia.
Gravíssimo. Este grupo de investigadores espanhóis decidiu ir ao Retraction Watch (que aconselho a que, pelo menos, conheçam) e recolher todos os artigos produzidos pelas chamadas paper mills (fábricas de papel) retractados entre 2004 e 2022. Estas fábricas são instituições que se dedicam à produção e venda em escala de artigos para “autores” que queiram aumentar quantitativamente o seu currículo. Ou seja, a fraude e a curriculite juntaram-se para gerar a chamada ganda banhada. Encontraram 1182 artigos e verificaram que a esmagadora maioria vem da China (97%), são publicados em jornais de impacto moderado (2º quartil de factor de impacto) e são moderadamente citados (média de 11 citações). Isto é gravíssimo. Ainda mais preocupante é que estamos apenas a falar dos artigos que foram descobertos…quantos mais andaram aí à solta? Será que já alguma vez nos caíram nas mãos ou subiram aos olhos? Reforça a necessidade extrema de rigor com a forma como avaliamos a informação que lemos para guiar a nossa prática e a qualidade das suas fontes.
Oncologia
Vigilância imagiológica depois de mastectomia sem vantagem clinicamente relevante.
OPINIÃO
PERSPECTIVA
Hematologia
Reflexão sobre o tratamento do mieloma múltiplo e todas as controvérsias actuais.
Neurologia
Revisão muito interessante com tanto de científico como quase de filosófico sobre paladar, sabor e olfacto.
Oncologia
Reflexão e discussão muito interessante sobre as consequências nefastas daaprovação acelerada da FDA. Aproximo-me principalmente da opinião do Chadi Nabhan, mas há pontos interessantes (e discutíveis) em todas. Resumindo a minha visão sobre tudo isto: rampa deslizante.
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