Recentemente, tivemos a 1ª grande conferência de cardiologia do ano que, a par das conferências da AHA e ESC, perfaz o trio das grandes conferências desta profícua área de investigação.
Para variar, foram anunciados vários estudos interessantes, muitos ensaios controlados e aleatorizados, alguns deles potenciais modificadores-de-prática. Fica aqui um pequeno resumo do que acho importante destacar, muito em parte de inspiração no muito mais competente This Week in Cardiology (para que não me acusem de roubos não declarados, mais vale declarar o ladrão que há em mim).
DESPORTO
MIOCARDOPATIA HIPERTRÓFICA E DESPORTO INTENSO
Observacional (coorte), n~1.600, Yale (EUA)
Continua a existir receio em deixar estes doentes fazer desporto de forma intensa. Daí que este grupo de investigadores liderados pela Prof. Rachel Lampert tenha decidido estudar tema dividindo os participantes em três grupos: exercício intenso, exercício moderado, sedentários. Felizmente, o desfecho composto de RCP, síncope por arritmia e choque apropriado por ICD foi igual nos três grupos, além de pouco frequente.
NOTA: Não menos interessante, fica a nota que foi também apresentado na mesma sessão um estudo observacional de 76 atletas de alta-competição (a maioria com MCH) que obtiveram licença de voltar ao desporto por 1 de 4 centros de cardiologia especializados, em que houve apenas 3 eventos não-fatais e nenhum deles relacionado com desporto.
DESPORTO INTENSO / RESISTÊNCIA E CÁLCIO CORONÁRIO
Observacional (coorte prospectiva), n~600, adultos de meia-idade recrutados online, Bélgica
O objectivo deste estudo foi estudar o "paradoxo de atletas de resistência", nomeadamente o de atletas de desportos de alta-resistência como maratonistas terem maior índice na escala de cálcio coronário (CAC). Também dividiram os participantes/atletas em três grupos: exercício de longa-data, exercício de início tardio, exercício normal. Conclusão? Mantém-se o sinal de que suspeitávamos, os atletas de alta-resistência têm maior CAC e mais placas calcificadas. Importante que em nenhum dos grupos se observou muitas placas "vulneráveis" (lipídicas). Agora, resta saber se ter mais placas calcificadas é pior. Há quem diga que não, há quem teorize que muito pelo contrário e os autores teorizaram que sim com a sua proposta curva em J para exercício e desfechos. Há quem também diga que é um estudo que não nos diz nada por não ter estudado desfechos relevantes...
HIPERTENSÃO PULMONAR
n=323, quadruplamente-oculto, 120 centros intercontinentais, 2021-2022
P - HTP Grupo 1 sob terapêutica (critérios de inclusão e exclusão muito extensos)
I - Sotatercept* (0.3mg/kg → alvo 0.7mg/kg)
C - Placebo
O 1º » MAIOR distância no teste de 6-metros - 34.4 vs 1 metros
2º » Melhoria nos desfechos secundários (RVP, NTpBNP, funcionalidade, sintomas)
Igual mortalidade
Iguais EAs totais e graves (numericamente, menos EAs graves)
*inibe vias celulares relacionados com as activinas e tem o potencial de inibir/reverter o remodeling vascular pulmonar
Comentário: Bem, ensaio não muito grande mas sem grandes falhas metodológicas globais óbvias (usaram testes estatísticos complexos que não domino). Acho que tem duas desvantagens mais nítidas que são i) desfechos não muito orientados ao doente, mas acaba por ter a funcionalidade e as escalas de sintomas num ensaio quadruplamente oculto (ou seja, com bom grau de confiança para desfechos subjetivos, e ii) pouco pragmático, ie critérios de inclusão e exclusão extensíssimos. Também é importante ter a noção de que estamos a falar de doentes bastante estáveis com a sua terapêutica (>90%). Finalizando, é bom que tenhamos mais medicamentos para tratar doenças complexas mas resta saber se eles melhoram de facto a vida dos nossos doentes e não são só mais 1 de muitos comprimidos que damos aos doentes, o que em última instância poderá diminuir a adesão dos outros.
Conclusão: Um novo fármaco chamado sotatercept tem alguma potencialidade terapêutica na Hipertensão Arterial Pulmonar do Grupo 1, mas ainda sem resultados muito entusiasmantes.
INSUFICIÊNCIA CARDÍACA
ICFEr e DAC
Observacional (sub-análise do ECA REVIVED-BCIS2 - Revascularização coronária sem benefício na ICFEr com DAC)
Nesta análise de subgrupo conduzida pelo grupo de investigadores principais ingleses do ensaio original, a viabilidade miocárdica (identificada sobretudo por RMC mas também por ETT de stress-dobutamina) não se associou a diferenças nos desfechos com revascularização, apesar de ser utilizada em alguns centros de hemodinâmica. E atenção que nada disto é total novidade, já sabíamos isto noutra população com a subanálise do STICH. Mais um sinal que nós, médicos, fazemos demasiado com pouca prova e ultimamente sem benefício ou mesmo malefício. Mais grave, a translação da prova científica para a prática clínica é muuuito morosa, o que nos deveria pelo menos alarmar (para evitar palavras fortes como chocar), já que estamos a falar aqui de vidas humanas.
ICFEp e PM
ECA, n=32, duplamente-oculto, crossover, centro único (EUA, Minnesota-Rochester-Mayo Clinic), 2014-2022
P - ICFEp + PM + Incompetência cronotrópica (= reserva de FC (FC esforço - FC repouso)<0.8 ou <0.62 se BB)
I - Pacing atrial adaptativo (aumenta FR no exercício)
C - Sem pacing adaptativo
*crossover: aleatorização e intervenção1M -> washout 1M -> crossover e intervenção 1M
O 1º » IGUAL consumo de oxigénio (VO2)
2º » Igual NT-pBNP e KCCQ
Comentário: ECA muito pequeno, apesar de tudo. E também não acho que contradiga o MyPACE, o PICO é diferente. É um tópico complexo que não domino de todo e deixo a discussão para quem sabe. Mas diria que andar a manipular pacings não adiante grande coisa, o que é diferente e não antagónico de dizer que diminuir muito a FC com BB na ICFEp pode ser deletério (segundo o MyPACE).
Conclusão: Aumentar pacing durante o exercício nos doentes já com PM mas incompetência cronotrópica não melhorou tolerância ao esforço.
RISCO CARDIOVASCULAR
ÁCIDO BEMPEDÓICO
ECA, n=13.970, duplamente-oculto, seguimento de 40 meses (>2.5 anos)
P - RCV + Incapazes de tomar estatina (intolerância ou vontade)
I - Ácido bempedóico 180mg qd
C - Placebo
O 1º » Menos MCV, EAM não-fatal, ACV não-fatal ou ICP - 11.7 vs 13.3 %, RRA 1.6%, NNT 63
IGUAL Mortalidade total
IGUAL MCV
IGUAIS AVC não-fatais
MENOS EAM não-fatal - 3,7 vs 4.8 % (NNT 91)
MENOS ICP - 6.2 vs 7.6 % (NNT 71)
2º » Mais Gota e Colelitíase (3.1 vs 2.1 % e 2.2 vs 1.2 % -> NNH 100)
» Mais aumento sérico de creatinina, ác. úrico e enzimas hepáticas
» Menos LDL - menos 29mg/dl (basal médio 139)
Comentário: Em primeiro lugar, com a prova científica de que dispomos, estamos a falar de um grupo muito pouco frequente (o de "incapaz de tomar estatina"), Agora, falando do ensaio propriamente dito. Acho que os números estão aqui, podem tirar as vossas conclusões. Um medicamente novo e provavelmente caro que apenas diminuiu a ocorrência de EAM não-fatais e de ICP sem diminuir mortalidade ou outros desfechos que saibamos. Claro que seria bom saber os desfechos de internamentos e qualidade de vida, sobretudo porque falamos de um ECA duplamente-oculto, e questiono-me porque não o fizeram (já que, ultimamente, estes desfechos têm até sido usados de forma um pouco abusiva). Para finalizar, o ácido bempedóico aumentou os adventos adversos quase na mesma proporção que diminuiu os EAM não-fatais, pelo que a taxa de internamentos permanece possivelmente relativamente igual. Voltando ao início, isto tudo em incapacidade para estatina, um contexto raro e sobrestimado.
Conclusão: Na muito rara ocorrência de incapacidade para estatina, o ácido bempedóico reduz EAM não-fatal e revascularização coronária, sem reduzir mortalidade ou AVC e aumentando gota e colelitíase (e outros).
INIBIDORES PCSK9
ECA, n=381, duplamente-oculto, 63 centros intercontinentais (sobretudo EUA), 2022
P - DCV ou RCV>5%/10A
I - iPCSK9 PO (MK-0616)
C - Placebo
O 1º » MENOR LDL -> -40 a -60% consoante 8 a 30 mg
2º » Iguais EAs
Comentário: Bom! Uma das grandes desvantagens dos iPCSK9 (além do preço) era a dificuldade posológica. Isto sem dúvida facilitará a vida deste fármaco e dos doentes que o tomam. Agora, resta conhecer os resultados do ECA de fase 3 e analisar os desfechos orientados para a doença, já que até estamos no meio duma altura em que se reanalisou o FOURIER (o ECA mais conhecido dos iPCSK9) e, além de se ter refutado a melhoria na mortalidade foi até encontrado um sinal alarmante de maior mortalidade cardiovascular. Enfim, aguardo mais estudo no assunto.
Conclusão: Inibidor oral da PCSK9 foi superior a placebo em doentes com risco cardiovascular para dimiuir LDL. Resta saber os desfechos orientados para a doença e a comparação com outros medicamentos e intervenções.
COMPARTICIPAÇÃO
ECA, n=4.671, não-oculto (apenas assessores), 2x2, seguimento por 36 meses, 2015-2021, Canada (Alberta)
P - >65 + 1 Doença (DAC, AVC, IC ou DRC) ou 2 FRV (DM2, tabagismo, HTA ou dislipidemia) + Salário "baixo" (<33.821eur/ano)
I1 - Comparticipação parcial
I2 - Comparticipação total (copayment elimination = menos 24eur/M)
I3 - Educação personalizada
O 1º » IGUAL morte, MCV, EAVC, AVC, revascularizações ou internamentos por IC
2º » Igual qualidade de vida
» Discreta melhoria na adesão a estatina - 0.72 vs 0.69
Comentário: Okay, o nosso sistema de saúde é muito diferente pelo que acho que não podemos aplicar este ensaio e resultados a Portugal sem um grande grau de imprecisão (sistema de saúde e população, já que este "baixo salário" é mais ou menos o que ganha um médico especialista em Portugal a trabalhar 40h no SNS...). No entanto, fica a prova que políticas com intervenção em saúde podem (e devem!) ser testadas em ensaio clínico! E com desfechos orientados ao doente!! Fica também a prova que nem tudo o que ingenuamente nos pareça bom o é de facto. Daí que temos de ter muito cuidado quando propomos intervenções a larga escala cujo impacto e resultado final é, no final de contas, bastante incerto.
Conclusão: Eliminar co-pagamento (uma espécie de comparticipação total) não melhorou desfechos orientados ao doente, tanto objectivos como subjectivos, e praticamente não aumentou adesão terapêutica.
Observacional (coorte transversal), n=12.924, adultos 20-45 anos, 2009-2010 vs 2017-2020, EUA
Muito alarmante. Os jovens adultos americanos estão ficar mais doentes. Depois do salto na esperança média de vida, parece que estamos agora a regredir nos países desenvolvidos. É o que acontece quando o mau politicamente correcto se infiltra no campo da obesidade, onde já li coisas graves como a "normalização da obesidade". Uma coisa é ajustar os nossos doentes em sofrimento, seja qual for a causa. Outra coisa é negar o malefício da obesidade. Enfim.
VALVULOPATIAS
INSUFICIÊNCIA MITRAL
ECA, n=350, não-oculto (apenas dos assessores), 81 centros (sobretudo EUA), 2019-2022
P - IT Grave
I - TEER (reparação tricúspide percutânea)
C - Terapia médica
O 1º » Melhor morte, cx, hospitalização por IC e qualidade de vida - win ratio 1.48 (IC 95% 1.06 a 2.13, p=0.02)
IGUAL Morte ou IGUAL cirurgia ou IGUAL hospitalizações
Melhor QdV -> +12.3 vs +0.6
2º » Igual teste da caminhada de 6 minutos
» Iguais EAs?
*win ratio = técnica estatística meio recente que estima o likelihood de que o tratamento seja melhor mas dando prioridade aos eventos mais graves.
Comentário: Acho que não é preciso saber ler bem um ensaio para olhar para aqui e ver que este é sobretudo um ensaio negativo. O único desfecho melhorado foi uma escala subjectiva de qualidade de vida (KCCQ), num ensaio sem ocultação e sem grupo de placebo (neste caso seria "intervenção mascarada ou sham"). E se também acham que seria impossível, vejam a discussão e o comentário final da investigadora principal do ORBITA no twitter.
Conclusão: Reparação percutânea tricúspide na IT grave não diminuiu mortalidade, cirurgia futura ou internamentos, tendo apenas melhorado o desfecho subjectivo de melhor qualidade de vida num ensaio não-oculto sem placebo.
Até à próxima.
Nota final: Deixei propositadamente de fora os i) ECA RENOVATE-COMPLEX-PCI por não ter dados suficientes para interpretar (o resumo não os forneceu) e ii) o estudo observacional sobre a "Pulsed Field Ablation" por ser um estudo observacional a tentar testar uma intervenção e por não ter conhecimento suficiente para o abordar.
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